quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Furacão

daqui.
Um furacão de emoções arrebatou-me o peito, feriu-me de morte o espírito, vindo de um céu azul bem longínquo, um céu por nascer num amanhã que talvez não chegue.

Mas a vida não é o amanhã, a vida não é o ontem que já foi, a vida é este preciso momento, o agora que sempre o será. A vida são os vinte e um por cento de oxigénio do ar que inspiramos a todo o instante.

E tu com medo de dançar, porque o chão te foge dos pés. Com medo de voar, por te faltarem as asas. Com medo de arriscar, porque receias perder o nada que tens.

Desapega-te das ligações ilusórias que te prendem a este chão que não é teu. Egoísmo crónico o nosso, que nos impele a chorar por aquilo que não é digno de lágrimas, que nos leva a esquecer o quanto sofreram os nossos antepassados para termos aquilo que temos hoje.

É esta mortalidade com que nascemos que dá cor à vida, vida que tantas vezes nos parece madrasta.

Mas tu não queres uma vida a preto e branco. Queres um arco-íris de vida.

Segura a minha mão. Está na hora de despertar.


terça-feira, 18 de novembro de 2014

Morrer uma última vez

Sónia Guerreiro
Não sabes o que escrever. Sentes-te presa, de mãos e pés atados a uma cadeira de ferro antigo, ferrugento, atirada ao mar com violência e destinada a bater no fundo na tua companhia.

Em momentos de aflição como este, o tempo abranda, enfraquece, perde o seu propósito. Tenta voltar atrás, mas não lhe é permitido.

O oxigénio escasseia. Não chega para dar vida ao sangue que, assustado, procura dar força e algum alento a um coração perdido por entre desilusões inesperadas em momentos de aparente felicidade.

E estás sozinha. Sozinha. Porque de cada vez que morremos, apenas nos temos a nós, a mais ninguém. E não são poucas as vezes que morremos nesta vida.

O mar que te envolve, o mar que te persegue, não é mais que um mar de lágrimas por chorar.

Permite-te morrer uma última vez. A vida que começar amanhã, será a melhor das vidas que já viveste.


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

um demónio em mim

não fez sol, no dia em que decidi matar-te.
talvez, por isso, tenha sentido a tua falta, ainda antes de deixares de o ser.
cansei-me de te ter tão perto de mim, a todo o momento, presente em cada pensamento, sempre com uma maldade visceral que me fazia sentir senhor de uma parcela do imenso inferno.
não quero pedaço de terra alguma.
prefiro um céu que desconheço, ou um mar que se afogue em mim.
guardaste o teu sorriso para os momentos em que fiquei sem chão.
viraste-me costas quando a felicidade me alumiava o espírito.
quando o meu discernimento se deixou subjugar pela tua aura desconcertante, cometi o pecado de ver em ti um aliado.
e tu, mostraste-me um mundo que eu nunca quis conhecer.
um mundo onde a seleção natural estás nas tuas mãos.
ainda sinto no meu ombro o peso da tua mão, as tuas unhas afiadas cravadas na minha pele, o meu ser a latejar continuamente.
és um demónio em mim.
ser desprezível que não se deixa abater.
sorri, uma última vez.


sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Incoerências

Da mesma forma que beber não é compatível com a condução (é fácil de entender porquê), fumar não combina nada bem com a prática de desporto.

Tenho amigos que fumam, naturalmente. Uns até, já crescidos, fumam às escondidas (e isto lembra-me sempre a história do meu cão que, ainda antes de alguém se aperceber da asneira que fez, denuncia a mesma através das orelhas caídas e do ingénuo semblante de culpa).

No entanto, de entre aqueles que fumam, apenas alguns me perturbam o espírito. Refiro-me àqueles que, por hipótese, fumam ene cigarros por dia, correm outros tantos quilómetros por semana, e ainda vão levantar uns pesos ao ginásio (missão cumprida?). Meus amigos, eu pergunto-me: porquê?

Sempre me deixei entusiasmar por paradoxos, o que me traz à memória outra história. A história do homem mais sortudo do mundo, que todos os dias acordava feliz e que, no mesmo instante, dizia para si mesmo: "Eu adoro viver!". Só que acontece que o homem tinha um estranho costume: todos os dias pegava no seu revólver, cujo tambor guardava apenas uma munição, rodava este último como quem roda uma roleta e premia o gatilho com a mesma descontração de quem se espreguiça pela manhã.

Um dia, teve azar.


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A ti

Não sei o que sentirá quem se vê forçado a contemplar o nosso mundo de longe, que tipo de saudade lhe correrá nas veias e irromperá do coração, privado de tudo aquilo que conhecemos.

A solidão profunda é uma força impetuosa e devastadora, que nos corrói por dentro até ao âmago do nosso ser, que nos descaracteriza e nos torna num estranho aos nossos olhos quando miramos a nossa imagem refletida num qualquer mar de profunda tristeza.

Por isso choro, sim, quando viajo para bem longe daqui e te vejo prostrada à beira-mar, perdida por entre pensamentos que, de forma veemente, buscam a distorção da realidade num sonho que já não volta, um sonho malogrado num abismo despojado de quaisquer emoções ou desejos.

Choro por ti de cada vez que viajo ao passado, antes ainda de te conhecer, e te encontro solitária, sem chão, entregue a pensamentos que, de modo fugaz, procuram uma explicação para aquilo que não é justo, aquilo que nem mil anos de reflexão ajudariam a entender.

Somos mais felizes quando nos entregamos à natureza, ao sabor do vento que desfolha as árvores, à brisa ligeira que sopra do mar, ao imenso céu que todos os dias nasce com uma nova esperança.

Não é por mais que eu escolhi entregar-me a ti.

A ti.


quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Desassossego

A idosa sentada no topo das escadas da Rua da Mãe d'Água, com a mão direita a segurar uma bengala envelhecida pelo sol e a mão esquerda a pedir esmola. Teria a idade da minha avó, com uns olhos grandes e vivos, embaciados por uma angústia inquietante.

O valor da esmola dada pouco importa, pois em nada irá alterar o rumo da sua vida, qualquer que seja ele.

Segui caminho, com a mente em busca de uma espécie de catarse que não encontrei.

Este é um país estranho. Ou talvez seja eu o estranho, rodeado por tantos outros estranhos que procuram resposta para perguntas que não se perdem pelo caminho.



terça-feira, 16 de setembro de 2014

Animais

Cada vez mais perto daquilo que sempre fomos, sem máscaras ou dissimulações. Somos animais, continuaremos a sê-lo. Quão paradoxal poderá ser aquela notícia em particular que nos chocou, se tivermos em conta que, na nossa essência, não passamos de animais, espécie dominante num planeta que (graças a deus?) permitiu a existência de vida?

Julgamo-nos seres especiais, por vezes predestinados, porque assim a vida é mais fácil. Tudo assumimos, sem questionar, e porque não? Pensar cansa, dirão alguns. Sonhar, agir, amar, lutar por aquilo que é certo, tudo cansa, naturalmente.

Por essas e por outras razões, a maioria de nós prefere nada fazer (il dolce far niente, quiçá). A velocidade com que surgem as interrogações, é a mesma com que se desvanecem.

De machete em punho, talvez fossemos capazes de desbravar algum terreno, de mostrar a uns quantos que não vale tudo neste jogo, de mostrar que, por vezes, um sorriso (sincero?) tem que se esforçar para tocar o céu. Doutra forma, de animais nunca iremos passar.

Fala-se em desumanização com alguma substância, em discursos ingénuos de quem não conhece a realidade do nosso mundo. Somos animais governados por animais num reino animal, à semelhança da alegoria de George Orwell.

E desenganem-se aqueles que acreditam na existência de uns quaisquer santos cuja missão é a de nos salvar. 'Cause there are no saints in the animal kingdom. Only breakfast and dinner.


terça-feira, 24 de junho de 2014

Tatuagens da nossa alma

daqui.
Dizem, aqueles que não sabem, que o amor é a maior força do universo. Desconhecem, talvez, o poder devastador da dor. Quando a dor é profunda, quando nos asfixia o espírito como se tivéssemos sido feitos prisioneiros numa floresta em chamas, na presença de um fogo tão ardente que não permitisse renascimentos, quando a dor se entranha no nosso ser e se torna parte da nossa natureza, o nosso destino encontra-se numa roleta russa de tambor cheio.

Com o revólver na mão, cadente, decadente, na direção do chão, desprovidos de energia para um infortunado disparo, arrastamos o nosso corpo por um futuro que não desejamos e que não procurámos. As cicatrizes causadas pela dor são as tatuagens da nossa alma, imutáveis enquanto não compreendemos que a luta que travamos contra o tempo é inglória e inconquistável.

A dor mordaz não se expressa através de lágrimas, de palavras ou de penitências. A dor é inexorável quando nos transforma no único deus do nosso olimpo, aquele que nenhum dos nossos é capaz de ver, de ouvir, de sentir, o deus de carne e osso que sentirá o frio gélido do rigoroso inverno que acompanha a dor, que sairá em busca do inferno para pôr fim ao tormento.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

À sua imagem

daqui.
Seria mais fácil se pudéssemos suspender o tempo? Será que eliminar o medo catatónico que nos persegue faria de nós pessoas mais felizes?

E com o tempo suspenso, será que haveria lugar à génese de alguma coisa? Seria possível falar com deus, pelo menos uma vez na vida, prometendo-lhe que tal conversa nunca seria transmitida a ninguém? Dirigir-lhe algumas questões que nos intrigam (a alguns, pelo menos), sem com isso pretender questionar a sua omnipotência?

Perguntar-lhe porque razão já morreram mais de cento e cinquenta mil pessoas vítimas da guerra civil Síria, das quais um terço civis?

Perguntar-lhe, também, a razão pela qual há um sem fim de milhões de pessoas escravizadas todos os dias?

Ou perguntar-lhe, por exemplo, qual a explicação para o facto de um sexto da população do nosso mundo passar fome?

Que não haja dúvidas, tudo nesta vida é relativo. Enquanto uns procuram, simplesmente, sobreviver, outros procuram, na infelicidade e infortúnio dos outros, encontrar a sua razão de viver.

Se deus nos fez à sua imagem, por favor... que me deixe passar a eternidade no inferno. Quem sabe, talvez não seja assim tão mau.

Mas, agora penso: tendo deus o dom da ubiquidade, significa isso que também está... no inferno?


A escrita não esmoreceu

A escrita não esmoreceu. Escrevo enquanto durmo, num caderno perdido por entre memórias que ganham vida em sonhos que esqueço quando abro os olhos. Acordado, vaticino o destino em pensamentos que um dia não serão mais que memórias, num silêncio apenas interrompido pelo fogo que consome o manuscrito que as minhas mãos seguram. Por vezes, a força das palavras enfatiza a fraqueza do papel. Nesses momentos, fecho os olhos e permito que o fogo arda em mim.