sábado, 25 de dezembro de 2010

A menina


A menina conta apenas com quatro primaveras. Os seus olhos, de um azul cor do mar e transparecendo a ingenuidade própria da idade, encontram-se fixados no chão poeirento que a rodeia. Uma vez nesta apoiado, o seu rosto aquece a parte superior da estrutura fria em forma de cavalo onde se encontra sentada. O carrossel mantém a sua forma antiga, com o seu movimento a percorrer e a perpetuar gerações divididas entre a alegria de uma infância eterna e o choro de uma realidade entretanto conhecida.

Apesar de não conhecer os segredos que a sua mãe guarda, de uma forma inconsciente ela ainda é capaz de sentir as indecisões maternas que viveu no seu ventre. Por vezes, o carrossel atravessa períodos de alguma turbulência, resultantes das suas frequentes lutas interiores em busca de amor. Mas esse amor que ela tanto anseia, esse amor que ela ainda não compreende, encontra-se à distância de dois dedos. Sentada num banco de jardim pintado de azul, a sua mãe observa-a com o sentimento de ternura mais puro que alguma vez poderá existir.

O momento é de uma beleza inimaginável. Desejo, de uma forma talvez desmedida, que comece a nevar. O sonho é meu, e os flocos de neve, atraídos pela gravidade, misturam-se com o amor que paira no ar. A menina fita o seu olhar nos olhos verde esmeralda da sua mãe, ao mesmo tempo que esboça um tímido e fugidio sorriso.

Respiro fundo e inspiro um pouco da felicidade que se vive neste pequeno ponto do imenso Universo que é o nosso.

Nunca abandones os teus sonhos: eles são a força que faz o carrossel girar e resistir aos momentos de tempestade.


segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Irmão de sangue


Terá sido há bem pouco tempo que, silenciosamente, a nossa amizade completou uma década. Quem sabe se, no momento em que a Terra terminava a sua décima volta em torno do Sol, contadas desde o momento em que nos conhecemos, não estaríamos em amena cavaqueira num qualquer local que nos seja familiar, brindando à nossa amizade?

Mas o que procuramos nós, afinal, num amigo? Empatia, honestidade, lealdade, confiança, altruísmo? Será tudo isto, mas ainda muito mais. Sou levado a crer que, num amigo, procuramos algo muito semelhante a um espelho de nós mesmos. Desta forma, não existe uma fórmula mágica para uma amizade especial: em primeiro lugar, teremos que gostar de nós próprios. Contrariando esta premissa, seremos impelidos a não gostar da imagem reflectida no espelho, o que dificultará a tarefa de termos alguns verdadeiros amigos.

E, em suma, é isso mesmo que tu és: um inestimável e verdadeiro amigo! Alguém que, apesar do interregno conhecido, nunca deixou de estar presente. Alguém que, na realidade, considero um irmão de sangue, tais são os princípios, valores e sonhos partilhados.

Que a nossa amizade seja sempre tão forte como a mais antiga das árvores deste mundo. Que resista às intempéries que possam surgir, quaisquer que sejam elas. Que contribua, com a sua quota-parte, para a sólida união existente no nosso núcleo duro de amigos.

Um bem haja à nossa amizade. Que esta seja eterna!


terça-feira, 16 de novembro de 2010

A serpente


Será, a coerência, uma virtude para quem a apresenta? Sê-lo-á, certamente, sempre que esta se apresentar como algo positivo. Se alguém se mantiver fiel a maus princípios, ou seja, coerente relativamente aos mesmos, que sobranceria será a sua ao sentir-se alguém especial? Sentir-se especial por ser... coerente? Afinal de contas, ser coerente não é sinónimo de ser virtuoso. Ou estarei enganado?

E por falar em engano, faz já algum tempo que conheci uma pomba (sem fel?). Era uma pomba majestosa, magnífica, uma autêntica divindade. Tinha uma envergadura de asas fabulosa, capaz de abarcar uma multidão inteira. Em suma, tinha um coração filantropo (de pomba?).

No entanto, de quando em vez, a pomba parecia mudar de aspecto. Esfriava o sangue e caminhava rastejando. Apesar desse feito, a sua beleza era tal que, ainda que me parecesse uma serpente, imprimia em mim um agradável sentimento de admiração.

Um dia, e agora que recordo melhor a situação as certezas ganham forma, podia jurar que a pomba se havia transformado, de facto, numa serpente. Peguei num dicionário, procurei a letra S, folheei mais umas páginas e eis que:

Serpente, s. f. (fig.) pessoa pérfida e traiçoeira (Do latim serpens).

O meu corpo estremeceu. Poderia ser verdade aquilo que acabara de ler? Era impossível, ou pelo menos assim eu o desejava. A pomba era uma... serpente? Impossível, era impossível! Voltei a pegar no dicionário, tendo procurado, desta feita, a letra P:

Pomba, s. f. (fig.) pessoa bondosa.

Tentei, de todas as formas à minha disposição, encontrar nisto alguma coerência. Desisti, deitei fora o dicionário e tratei de conseguir libertar-me do preconceito que não me abandonava o espírito.

Procurei gostar da serpente, mas... adivinhem?


segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Nobre orgulho


Quando via surgir nela um ego do tamanho do mundo, o seu amor era reduzido a cinzas. O seu sentimento tornava-se tão estranhamente paradoxal, que rapidamente se incendiava dentro de si a vontade de alcançar semelhante ego.

A soberba que, a ela, era latente na maior parte das situações do quotidiano, assumia um estado de explosão incontida quando ele decidia demonstrar por si aquele amor imensurável.

Quantas não foram as noites em que ele, deitado ao luar e com o olhar fixo nas estrelas, reflectiu sobre aquela altivez agridoce que lhe consumia o espírito. Quantas não foram as vezes em que ele, cansado de ceder, decidiu colocar um ponto final numa história cujo começo, aos olhos dela, não fora se não mais que um acaso fortuito.

Mas o ser humano, com a sua desmedida capacidade de resistência ao sofrimento, é capaz de virar o mundo às avessas em busca de alguma esperança. Infelizmente, são demasiadas as vezes em que isto se revela um erro crasso.

Esta história, cujo final até o mais ingénuo será capaz de desvendar, não será a excepção à regra.

No dia em que ela lhe sentiu a falta, no dia em que o seu nobre orgulho se deixou vencer pela crescente carência do seu coração, ele já havia partido.

Por fim, ela chorou. Chorou lágrimas insolentes, mas chorou.


terça-feira, 2 de novembro de 2010

Dois velhos amigos


Cada passo que davas, em cada pedra daquele chão nefando e tenebroso, era um passo a caminho da escuridão total. Atrás de ti, um milhão de espíritos à procura de redenção.

Quando abrias os braços, duas imponentes asas surgiam misteriosamente, de uma forma mágica e apenas ao alcance dos predestinados. O teu maior defeito? A fidelidade aos princípios reservados aos grandes pensadores: honra, honestidade e camaradagem.

No dia em que me cruzar com a escuridão, sei que estarás à minha espera de braços abertos, qual tutor aguardando o seu aprendiz favorito. Mostrar-me-ás o caminho mais difícil, aquele que me permitirá sentir o doce sabor da vitória sobre a morte.

Pois quando a morte me piscar o olho, sei que serás o meu braço direito, o Anjo Negro que estará ao meu lado enquanto os Santos dormem o sono dos justos.

E se, no Reino de Deus, eu subtrair ao soberano o seu lugar, num acto de exasperação e pura cupidez, eu tornar-me-ei, então, no teu preceptor. E, nessa altura, serei para ti o mestre obsequioso que me ensinaste ser.

Reunirei, em ti, a força de mil Anjos, a filantropia de mil Santos.

Nesse dia, o abraço de dois velhos amigos será mais poderoso que qualquer Deus.


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O labirinto


Ela deteve-se diante da entrada do labirinto. O acesso não apresentava mais que dois metros de largura, com o labirinto a estender-se para cada um dos lados até a vista não ter fim. Sou levado a crer que o sol já se havia posto, dada a pouca luminosidade que chegava ao local. Mas, quem sabe, talvez o dia estivesse a nascer.

Ao longe, ouvia-se uma turba ensurdecedora, cuja distância não permitia discernir o som que ecoava no céu. Mais tarde, ela haveria de recordar este momento com a mesma perplexidade com que o vivenciou.

Sem perceber o que a levava a entrar no labirinto, ela não hesitou ao transpor a cabida. As paredes do labirinto eram constituídas por arbustos cerrados desde o solo, com cerca de três metros de altura. Num lugar como este, em que os caminhos estão dispostos de modo a dificultar a saída, seria difícil imaginar alguém deambulando vagarosamente ao sabor do vento. No entanto, era mesmo isso a que se assistia.

Momentos havia em que o silêncio era fantasmagórico, momentos em que, rodeada pela vegetação e sem um rumo definido, ela se sentia estranhamente perseguida. Esses momentos eram permanentemente interrompidos pelo canto dos corvos que sobrevoavam o labirinto, cujas plumagens negras transmitiam ao local uma insígnia ainda mais obscura.

Se imaginar que foram várias as horas despendidas a vaguear naquele dédalo quase infinito, não estarei longe da verdade. A turba, entretanto, não mais se ouviu, e, enquanto percorria os estreitos caminhos que se lhe apresentavam, a sua mente projetava um castelo no cimo de uma montanha. Mais tarde, lembrar-se-ia deste pensamento com um enorme sentimento de incerteza. Estaria a sonhar?

Quando o cansaço já se apoderava do seu corpo, e os seus longos cabelos se mostravam eletrizantes perante a chegada de uma autêntica armada de nuvens intempestivas, eis senão quando a saída surge no seu horizonte. Uma vez alcançada, e para sua incredulidade, um imponente castelo emerge do cimo da montanha mais próxima, aquela situada de frente para o labirinto.

Sem qualquer indecisão dissimulada, ela procura – ofegante – chegar à entrada da majestosa fortaleza. O percurso até lá foi feito por entre as árvores de uma floresta quase mágica, cujo brilho dos seus elementos seduzia a vista de quem se decidisse a atravessá-la. Em pouco mais de quinze minutos, esse caminho já se encontrava percorrido.

Agora, uma vez tão próxima da grandiosa porta de madeira do castelo, ela é atingida por um sentimento de inusitada curiosidade. Esvoaçando horizontalmente, os seus longos cabelos dão vida ao momento, fruto da graciosidade do vento inspirador que se sentia.

Ao transpor a porta, que se apresentava entreaberta, surge – como único elemento – uma escadaria de pedra mármore no centro de um amplo salão. Sente-se, de imediato, impelida a tirar as sabrinas que traz calçadas. Sentindo o chão frio sob a planta dos seus pés descalços, opta por flutuar sobre a centena de degraus que tem pela frente.

Atingido o topo da escadaria, eis que surge, diante de si, algo com o qual já havia sonhado. Sim, estava certa disso.

O pequeno baú de madeira, que não teria mais que um palmo de comprimento, apresentava-se com um aspeto algo desgastado. A meio do artefacto, saltava à vista uma pequena tranca composta por uma diminuta barra. Perante tal pormenor, ela depressa se deu conta de que o interior do baú estaria pronto a ser revelado.

Uma vez descoberto o objeto que guardava, a sua vida mudou para sempre. Tinha, nas suas mãos, a chave do meu coração...



Fotografia de João Miranda.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Dois mundos


Era o pombo-correio o responsável pela constante troca de mensagens de amor. Quando um dia a terra se abriu, fruto de um fenómeno hoje tão bem conhecido, mas que naquele tempo ido tanta perplexidade causou, as suas vidas sofreram o maior revés que alguma vez haviam conhecido.

A distância que os separava, desde então, quase que sentenciara o fascinante amor que havia nascido nos seus corações. Ela, habitante do enorme pedaço de terra que se havia deslocado para oeste; ele, ser errante do pequeno pedaço de terra que se havia afastado no sentido oposto.

Perante aquele cenário, perante o afastamento contínuo – relativamente ao ponto de origem – das duas peças daquele estranho puzzle, o pombo tornara-se num meio de comunicação extraordinariamente admirável. Sem ter de atravessar as águas revoltas do novo mar nascido, que todas as embarcações decidia soçobrar, a ave desempenhava o seu trabalho com esmero e tenacidade.

Uma vez que o seu próprio ninho se havia partido em dois mundos, o pombo passava os seus dias num vaivém permanente, tentando, desesperadamente, reencontrar a sua origem.

As mensagens, essas, eram escritas quase à mesma velocidade com que viajavam para as mãos da outra parte. Eram trocadas promessas várias, desejos muitos, saudades infinitas, lágrimas capazes de afogar o mundo... nada escapava à veia literária dos dois amantes, que juravam um ao outro um amor para além do imaginável.

Mas, com o decorrer do tempo, a distância existente entre os dois pedaços de terra foi crescendo. Como consequência desse infortúnio, as travessias do pombo tornavam-se cada vez mais longas, mesmo quando o vento desempenhava um papel de benfeitor. O resultado de tão dolorosa consequência não poderia ser outro: as saudades foram consumindo o espírito de cada um; a distância foi enfraquecendo a pobre ave...

E quando a esperança tendia a extinguir-se, quando os seus corações já só alimentavam cicatrizes resultantes de anos de sofrimento, eis que o improvável toma lugar. Os dois pedaços de terra, após longa viagem em sentidos opostos, voltam a encontrar-se.

No céu, o último voo do pombo é substituído por uma invulgar chuva de estrelas.

Na terra, o primeiro abraço de muitos anos assume o renascer de duas vidas.


terça-feira, 21 de setembro de 2010

O erro de Deus


Ele esperou por ela à janela. Esperou dias, meses, anos, uma vida inteira. Esperou até ficar bem velhinho, e o corpo se render a um imperativo a que chamamos morte. Não obstante, Deus restituiu-lhe a juventude e deu-lhe a possibilidade de voltar à Terra, no pressuposto de ver cumprido o seu desejo mais antigo: descobrir o verdadeiro poder do amor. Desde que havia criado o dia e a noite, o céu e a terra, o Sol e a Lua, a água, as plantas, as árvores, os peixes, as aves e os restantes animais, desde o dia que havia criado o Homem, Deus questionava-se sobre algo que, amarguradamente, desconhecia.

Após uma tentativa falhada, algo que nunca antes tinha ocorrido, Deus voltou a arregaçar as mangas e, em seguida, pôs mãos à obra. Desenhou o melhor desígnio que se achava capaz de projectar, colocando a pobre alma de novo na Terra e ressuscitando-a num lindo bebé.

O destino que lhe cabia era simples: ter uma infância perfeita, com uns pais e amigos perfeitos, numa escola perfeita, com a educação perfeita, na cidade perfeita. Aos dezoito anos, e partindo do pressuposto de que os Seus divinos cálculos, desta vez, não falhariam, o rapaz iria conhecer a sua cara metade, a sua alma gémea, a sua musa inspiradora. Aos dezoito anos, o rapaz iria conhecer o verdadeiro amor, permitindo a Deus a descoberta de algo que, apesar de se apresentar como Sua criação, transcendia a Sua compreensão.

E assim foi. Ou talvez não...

O rapaz cresceu forte, determinado, ambicioso. Aos seis anos já lia Tolstoi, aos dez anos praticava natação, futebol e judo, aos catorze anos já assumia um compromisso sério, aos desasseis anos cometia a sua primeira traição. Aos dezoitos anos entrava na melhor faculdade da cidade, aos dezoito anos tornava-se uma pessoa altiva, arrogante e preconceituosa, aos dezoito anos colocava termo a um namoro repleto de infidelidades. Deus sentia-se um ser errático perante aquele cenário que, salvo melhor juízo, considerava repulsivo.

Contudo, Deus acreditava ser ainda possível ocorrer uma mudança positiva. Deus estava crente de que, uma vez mais, os Seus cálculos haviam fracassado. Mas a vida é longa, e tempo foi algo que nunca Lhe faltou. E Deus, portanto, esperou.

Mas terá esperado em vão?

Aos vinte e um anos, o rapaz concluiu o seu curso. Aos vinte e um anos, ainda que dando seguimento aos seus estudos, o rapaz iniciou, igualmente, a sua carreira profissional. Aos trinta anos, com um considerável sucesso alcançado já como empreendedor, e após algumas relações mal sucedidas, o rapaz, agora homem, empenha-se no objectivo de constituir família. Aos trinta e cinco anos decide casar com uma mulher que não ama, e aos trinta e sete anos tem o primeiro filho da mulher que não ama. Aos trinta e sete anos, as traições multiplicam-se. Aos quarenta anos, o homem recorda a infância com saudade. Não se lembra da última vez que jogou futebol com os seus amigos, não se lembra da última vez em que foi feliz. Se alguma vez o foi de verdade.

Aos quarenta e cinco anos, viciado inveterado do álcool e do tabaco, o homem reencontra Deus no céu, após ter sido vítima de um ataque cardíaco fatal, momentos após se ter deitado ao lado da mulher que não ama.

Deus foi ingénuo. Deus, ao ver o homem perante Si, não foi capaz de conter o choro do desalento.

A obsessão de uma vida perfeita, induzida na mente da pobre alma, levou ao simples esquecimento do propósito que nos coloca neste belíssimo grão de areia do vasto deserto que é o Universo: sermos felizes!

O verdadeiro poder do amor não está nas mãos de Deus, mas sim nos nossos corações.

Deus errou. E nós, também.


domingo, 5 de setembro de 2010

A aldeia


Mas que histórias fantásticas as daquela aldeia. A aldeia situada no fim do mundo, onde para lá chegar o comboio se perdia no meio dos vales e das montanhas.

Era a aldeia do poço mais fundo da Terra, da cobra-d'água do tamanho de dois homens adultos, do sujeito que nunca dormia e passava os dias e noites a contemplar o céu.

Era a aldeia do açude onde as mulheres não mais faziam que esfregar e lavar roupa.

Era a aldeia onde habitavam os maiores insectos do reino animal, e onde os morcegos eram do tamanho de águias para lhes poderem fazer face.

Era a aldeia da rã que vivia feliz num chafariz, do pequeno lacrau que corria por baixo dos meus pés, enquanto sentado no muro do quintal.

Era a aldeia onde os meus sonhos ganhavam vida, onde as minhas fantasias de menino se tornavam realidade.

Vinte anos depois, a aldeia não é mais a mesma.

O comboio fareja o caminho como um cão perdigueiro, mais rápido que a própria luz. O poço perdeu o seu encanto de construção assustadora, a cobra-d'água é pouco maior do que um palmo e meio. Quanto ao homem, que dizer de uma estátua que olha o céu sem azo a desatenções?

O açude é apenas uma lembrança, pois o ribeiro não resistiu à febre divina. Os insectos recuperaram a sua pequenez, os morcegos - resignados - seguiram o mesmo caminho.

O lugar onde antes existia um chafariz, é agora ocupado por um banco de jardim. Terá a rã regressado ao açude onde a água já não corre, e encontrado a companhia de um qualquer lacrau escondido debaixo de um seixo?

Rasgos de memória de uma infância não muito longínqua, vivida com anseio, paixão e muita fantasia.


sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O amor (parte II)


Estávamos sentados no topo do telhado daquela casa. Da nossa casa. Encostada ao meu peito, ouvias bater o meu coração, com os teus longos cabelos cor de mel a adocicarem o momento.

Era o primeiro dia soalheiro daquele impetuoso outono. O Sol, preguiçoso, começava a esconder-se por detrás do horizonte.

“Conta-me uma estória”, pediste-me. O teu olhar incendiou-me o espírito, ao mesmo tempo que caía a última folha do castanheiro vizinho, presença assídua em tantas tardes de namoro.

“Era uma vez um menino que andava perdido no mundo. Havia-se perdido dos seus pais no meio de uma forte tempestade, tendo ficado só e desamparado num mundo que não era o seu.

O menino, lutador nato e guerreiro incansável, nunca desistiu de procurar a sua família, tendo um dia tomado conhecimento do infortúnio que se lhe havia apresentado: encontrava-se definitivamente sozinho neste mundo. A tempestade não havia poupado vidas, com excepção apenas da sua.

Sem nunca se resignar, o menino não olhou para o passado. Apagou as cicatrizes da sua alma, e prosseguiu viagem. Durante anos, viveu nómada e amante da Natureza. Percorreu os fiordes da costa oeste da Noruega, onde aprendeu um pouco da história Viking. Navegou nas águas do rio Verdon, no sudoeste de França, onde absorveu o poder dos deuses e espíritos da Natureza. Combateu os seus medos ancestrais nas Covas de Frasassi, o maravilhoso mundo subterrâneo de Itália. Desceu as águas do rio Nilo, a semente da fertilidade do Egipto. Chorou ao contemplar a beleza imensurável das montanhas de Ruwenzori, na fronteira entre o Congo e o Uganda. Nadou nas águas do Mar Morto, de mãos dadas com a história bíblica. Mas foi nas colinas de Kuei-Ling, nos conhecidos penhascos de pão de açúcar da China, que encontrou finalmente a paz.

O regresso às origens foi algo natural, algo que o seu subconsciente há muito procurava. O menino avistou, ao longe, uma árvore, sozinha numa vasta planície. Era Primavera, e as suas folhas dançavam ao sabor do vento. O castanheiro era uma figura marcante daquela paisagem.

Pois foi junto à grande árvore que o menino a encontrou. Com os seus longos cabelos cor de mel e o seu olhar profundo, a paixão nasceu num segundo.

E até hoje, as suas vidas são uma só.”

“Eu conheço essa estória”, dizes-me com aquele sorriso só teu. “E eu amo esse menino”, acrescentas por fim...


quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Falls Church: a Estória do Assassino


Sorumbático, o assassino caminhava pela West Broad Street da pequena cidade de Falls Church, no Estado Americano de Virgínia. Dirigia-se para o lado Este da povoação, afectado por um estranho sentimento de repugnância por si mesmo.

Havia cometido um crime hediondo, pelo qual já havia nutrido um enorme orgulho. Neste momento, era acometido por uma repulsa sem fim, procurando a todo o custo a redenção junto de Deus. Mas Deus não o queria perto de si.

Em cada cruzamento que se apresentava no seu caminho, aí estava o Diabo a espreitá-lo, a medir os seus movimentos, a sentir o seu cheiro fresco de homicida.

Ainda que o assassino tivesse perdido os seus óculos, e a sua miopia não o ajudasse a discernir um abeto de um cipreste a uma distância de dez metros, este já tinha percebido que não se encontrava sozinho na então solitária e estranhamente fantasmagórica Falls Church.

Enquanto o Sol se punha, e perante o olhar atento do Todo-poderoso, o Diabo propõe a si mesmo o jogo do “gato e do rato”. Há muito que ansiava por um pouco de diversão, e eis que este momento se afigurava magistral para o efeito.

O assassino acaba de avistar um vulto na esquina da North Fairfax Street. Quase que instantaneamente, o Demónio procura esconder-se atrás de uma árvore de porte médio. De fora fica apenas a sua cauda sibilante, cortando o vento melodiosamente.

Assustado, e julgando estar a delirar, o assassino empreende uma fuga rápida pela Lawton Street, tentando – desesperadamente – chegar ao Falls Church Park e ao seu denso, embora diminuto, bosque.

O Diabo, não dispondo do dom da ubiquidade, prontamente assume o papel de gato, procurando alcançar avidamente a sua presa.

O assassino chega ao Falls Church Park com os bofes de fora, ofegando descompassadamente. Com um revólver de calibre trinta e oito na mão direita, recorda-se, a custo, do crime cometido há uns dias atrás. Parece conseguir, por momentos, sentir o aroma do salitre, do enxofre e do carvão, numa composição explosiva que denominamos de pólvora. Esta breve sensação deixa-o sombriamente empolgado, desejando voltar a avistar o vulto de há pouco.

Apercebendo-se da existência do revólver, e temendo pela sua vida, uma vez que de carne e osso também é feito, o Diabo prepara uma verdadeira cilada ao assassino. Com garras de felino, sobe sorrateiramente ao topo do freixo mais alto do bosque. Enquanto isso, o assassino puxa para fora o tambor do seu revólver, conferindo o número de munições: depois do frenesim de há dias, apenas lhe sobraram duas.

A uma distância de vinte metros do solo, o Demónio deixa escapar um sorriso diabólico, ao mesmo tempo que parte silenciosamente um ramo e o atira para junto da base da árvore, procurando trazer até si o assassino.

Ao ouvir o barulho causado pelo impacto do ramo no chão do bosque, o assassino aponta o revólver para o ar, puxa o cão atrás e prime freneticamente o gatilho, numa clara tentativa de amedrontar o vulto escondido.

Pois o projéctil, quem sabe por inspiração divina, rasga o ar na precisa direcção do Diabo, que se encontrava aninhado no ramo mais alto do freixo.

Diz quem sabe, por inconveniente conhecimento de causa, que se assemelha a uma picada de agulha. Pois terá sido o Diabo, certamente, presenteado com diferente dor, visto que quando a bala rompe por completo o tendão de aquiles do seu pé esquerdo, um grito lancinante irrompe do Falls Church Park, prolongando-se até ao momento em que este se estatela no solo.

O assassino, estupefacto, aproxima-se da Besta, com um olhar febril e experienciando uma friúra interior imensurável. O Diabo geme com dores, ao mesmo tempo que o assassino roda o tambor do seu revólver, no qual sobra agora uma munição. Dirigindo-se ao Demónio, com os olhos incendiados pela loucura, pergunta-lhe de forma seca e sem rodeios:

“Vamos jogar à roleta russa?”


terça-feira, 20 de julho de 2010

Menino de palmo e meio


Levantas-te bem cedo, quando o Sol ainda está longe de nascer. Não tens mais que quatro aninhos, a pele queimada pelo astro imperador.

Pões-te a caminho com os teus irmãos, numa jornada repetida dia após dia, onde os sonhos perdem força e o destino tem medo de sorrir.

São cerca de vinte quilómetros a distância que te separa do teu quotidiano. Sob um calor que não teme mostrar a sua força, que não dá tréguas, caminhas pela areia fina do deserto até à barraca que te servirá de abrigo.

Quando me vês, corres até mim com o intuito de me venderes os teus fios feitos à mão. Fico encantado com a beleza dos mesmos, cada um deles carregando uma pequena pedra em forma de coração. Os fios parecem ganhar vida nas tuas pequeninas mãos, com as pedras a reluzirem o esplendor da luz solar. O relógio marca as onze horas da manhã, quando o calor já se torna insuportável no deserto do Saara.

Não hesito um segundo em retirar o dinheiro para te comprar meia dúzia de fios. Pois é num gesto quase mecânico que levas a mão direita ao bolso das tuas calças, e de lá retiras o troco certo para me dares. “Fica com ele”, digo-te espontaneamente. Vejo os teus olhos verdes refulgirem uma última vez, ao mesmo tempo que viras costas e corres para o próximo turista.

Foi na Tunísia que te conheci, menino de palmo e meio.


segunda-feira, 12 de julho de 2010

A viagem


Quinze de Agosto do ano Dois Mil e Oito. Acordas com uma ligeira dor de cabeça, massacrado pelo contínuo calor nocturno. O termómetro do teu relógio despertador marca vinte e oito graus celsius. O teu relógio despertador marca as seis horas da manhã.

Não perdes tempo. Tomas um banho rápido, comes uma fatia de pão torrado e bebes um copo de leite frio. A indumentária é a própria desta época. Calçado confortável, uns calções pelos joelhos e uma t-shirt cor da luz. Num dia quente como o de hoje, não vais querer o Sol a rasgar-te o peito.

Sais à pressa de casa, já com uma mochila às costas e o passaporte na mão. Não havias percorrido quinhentos metros, por uma das sete colinas da tua cidade, quando fazes sinal ao condutor do primeiro táxi que avistas. “Para o aeroporto, por favor”, dizes-lhe, logo após teres proferido o “bom dia” mais áspero do último ano.

A viagem até ao aeroporto decorre sem quaisquer sobressaltos. Já no seu interior, e cumpridas as formalidades necessárias para quem se prepara para levantar voo, diriges-te para o local de embarque.

É num ápice que te vês transportado para o outro lado do oceano. Aterras no Aeroporto de Newark, onde te espera um amigo. Trocam um abraço sentido, e logo seguem caminho no seu carro americano. O destino encontra-se em Englewood, a cerca de vinte milhas do Aeroporto.

O teu amigo roda a chave na ignição, a curta viagem chegou ao fim. Abres a porta do carro para sair, quando o relógio marca as treze horas. Cruzas o portão do Brookside Cemetery, sob o olhar atento do teu amigo, que entretanto já se encostou à chapa quente do seu bólide.

As saudades apertam-te o coração, o sangue circula pelas veias mais veloz que nunca. Sentes um nó na garganta, uma vontade imensa de chorar. Os duzentos metros que andaste a partir da entrada, pareceram-te os mais de cinco mil quilómetros de voo que havias acabado de fazer.

Foi em frente da lápide que almejavas reencontrar, que a primeira lágrima caíu no solo verdejante. Aninhas-te a seu lado, tentando alcançar a sua respiração.

“Quinze de Agosto do ano Dois Mil e Sete. Tua para sempre…”


quinta-feira, 3 de junho de 2010

Mundo dos Sonhos



No Mundo dos Sonhos, onde tudo é possível, eu e tu não conhecemos a tristeza.

Para namorar, mandamos parar o tempo. Suspensa no ar, a areia que cai no interior da ampulheta vence a gravidade. O tempo pára.

A felicidade é o nosso estado de graça, e os nossos rostos não conhecem senão o sorriso um do outro.

Todos os dias acordamos com o canto dos pássaros, com o aroma primaveril das flores.

Os dias são passados numa azáfama apaixonada, com viagens pelos sonhos mais bonitos que somos capazes de sonhar.

Mergulhamos nas águas tépidas das praias mais deslumbrantes alguma vez imaginadas, voamos sobre paisagens que nem Deus seria capaz de criar.

Contemplamo-nos ao deitar, abraçados, deixando os nossos espíritos livres para se amarem.

Quando anoitece, chamamos ao nosso Mundo a luz das estrelas, que nos vela o sono com um brilho especial e fascinante.

De olhos fechados, consigo sentir o teu ar de menina traquina a tocar-me o coração, com o mesmo encanto que caracteriza a nossa paixão.

Sentados, agora, no topo do Mundo dos Sonhos, vemos nascer o Sol como se da primeira vez se tratasse, cujos raios dão fulgor aos teus longos cabelos morenos.

De mãos dadas, olhamos, juntos, o céu.

Este Mundo é só nosso.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A vida, para além da...


A tua vida era um rascunho. A humildade e inocência que imprimias ao teu quotidiano, permitiram-te ganhar o respeito e o carinho de muitos.

E porquê um rascunho? Não suportavas a arrogância de uns quantos que te rodeavam, a altivez a que recorriam para atingir os seus objetivos, a sobranceria característica dos fracos.

Foste riscando, do teu diário, os dias menos bons. Se tivesse tido de escolher entre ti e deus, a escolha não teria sido difícil: eras perfeita.

Os dias maus foram aumentando. Procuravas, nos meus braços, o calor eterno de quem te amava. E eu amava-te.

Deixaste de olhar para as estrelas. Abraçavas-me, com força, sem conseguires conter as tuas doces lágrimas. O quanto me custava ver-te chorar.

Escolheste o caminho mais fácil. Nunca conseguirei aceitar a tua partida.

Quando chamas por mim e eu não te ouço, quando sinto os teus passos e não te vejo, o meu coração fica mais pequeno. E é nesses momentos que choro as tuas lágrimas.

Ainda hoje te sinto perto, muito perto, quando corro atrás do vento.


quinta-feira, 13 de maio de 2010

A flor-das-pétalas-de-ouro


O cenário era apocalíptico, verdadeiramente assustador. A humanidade enfrentava, uma vez mais, a sua maior prova de fogo: evitar a sua própria extinção.

As cidades eram teatros de guerra e destruição, onde se representavam peças de um dramatismo demasiado real, com um pano de fundo pintado em tons de cinzento. A fome assolava a maior parte daqueles que vagueavam pelas ruas. O crime fazia agora parte das nossas vidas.

O crime… talvez este não existisse, tal seria o paradoxo de considerar crime àquilo que não tem lei para ser punido. A anarquia reinava.

Desde cedo aprendi que o ódio não é o sentimento contrário do amor. As pessoas haviam deixado de amar, para simplesmente viverem num clima de medo constante e ubíquo. As pessoas não odiavam as suas vidas. Elas tão-somente tinham medo de viver.

E quando assim é, quando caminhamos sem destino e envolvidos por todos os sentimentos infaustos que uma mente sã ainda consegue distinguir, se não tivermos um objectivo, o medo há-de seduzir-nos a esquecer o amor.

Pois bem, não era nesse cenário que eu me revia. Eu tinha um propósito bem delineado, que jamais iria abandonar.

Rezava a lenda que, numa zona recôndita do nosso mundo cinzento, havia uma flor com pétalas feitas de ouro, onde se encontrava concentrada toda a energia positiva da Terra. Uma vez retirada do solo, a flor espalharia em todas as direcções a energia que guardava, vaticinando um mundo pintado com as cores do arco-íris.

E foi com esse desígnio que, nos quatro cantos do mundo, procurámos, os dois, a flor-das-pétalas-de-ouro. Num dia em que o céu se mostrou mais carente, chorando uma chuva copiosa, eis que a flor mais bela do Universo surgiu diante dos nossos olhos. A sua perfeição fez-nos sentir insignificantes, mas não menos apaixonados.

Corri para ela, na ânsia de salvar o mundo, na ânsia de te ter ainda mais perto de mim. Com a ligeireza que o momento exigia, a flor rompe a sua ligação com o mundo. O cinzento deu lugar a todas as cores entretanto adormecidas, ao mesmo tempo que os sorrisos começaram a florescer onde antes existia, apenas, o medo.

Olhas para mim, com aquele olhar que dispensa quaisquer palavras.

Abraçamo-nos, e trocamos o beijo que mudou o mundo.

A flor-das-pétalas-de-ouro é tua!


sexta-feira, 23 de abril de 2010

História de Amor


Num monte não muito longe daqui, onde durante a noite apenas a Natureza tem o dom da palavra, eles contemplavam, deitados, o luar. O vento soprava vagarosamente, permitindo que as árvores circundantes tivessem um sono tranquilo.

Contavam as estrelas no céu, lado a lado, com a cumplicidade característica de dois amantes. De quando em vez, uma ou outra estrela cadente rasgava o pano negro de fundo, deixando no ar um aroma celestial ardente. Ainda que a distância que os separasse dos corpos celestes fosse astronómica, eles estavam capazes de sentir cada bocadinho do seu rasto.

Ao fim de uma incansável e longa viagem em busca do sentimento mais puro existente em todo o Universo, ei-los a gozar o merecido descanso. A mão direita dele segura, apaixonadamente, a mão esquerda dela. Os dedos entrelaçados desejam que este momento seja eterno, tão perfeito que ele se mostra.

E foi naquele monte que a História de Amor atingiu o seu auge. Embebidos por uma paixão difícil de transcrever para o papel, os seus corpos uniram-se sob o olhar enternecido da Natureza.

Daí a nove meses, as suas vidas estarão num nível superior, aquele que resulta do Amor verdadeiro.

Pois aqui deixo a minha mensagem: amem-se, como se não houvesse amanhã!

(para ti, minha amiga)


quarta-feira, 14 de abril de 2010

Vamos dançar?


O chão é feito de mosaicos pretos e brancos, qual tabuleiro de xadrez. Não sei se, neste jogo, interpretas o papel de Rainha, mas eu não passo de um mero Peão.

O teu longo vestido arrasta-se pela superfície fria sob os teus pés, agitando-se perante uma leve brisa de essência romântica. Majestosa, vais desfilando com aprumo, caminhando de forma inabalável na minha direcção.

Vacilante é como me sinto, e, ainda assim, não consigo desviar o meu olhar do teu. Deixas que os teus lábios se expandam, dando lugar ao sorriso mais fascinante que alguma vez contemplei.

O tempo, esse, não abranda. Ao invés disso, acelera estonteantemente. Numa fracção de segundos, a tua mão já segura na minha, apelando a um convite que fez disparar o meu tímido coração.

“Vamos dançar?”, perguntas-me. Devolvo-te o mesmo sorriso apaixonado, enquanto os nossos corpos se movem perante a música cantada pelos nossos corações.

O tempo, esse, pára só para nos ver dançar. Hipnotizado pela sintonia dos nossos movimentos, deixa em suspenso todo o Universo circundante, colocando-nos no centro deste.

Os meus lábios tocam na pele suave do teu pescoço, enquanto me sussuras ao ouvido: “Amo-te”.

Esta dança será eterna.


domingo, 4 de abril de 2010

Escadas da vida


Sibilante, ela subia as intermináveis escadas, degrau após degrau. O eco produzido pelo som agudo que os seus lábios deixavam escapar, entranhava-se nas paredes da grandiosa Torre.

Sem nunca se deter, os seus pés despidos flutuavam sobre cada um dos milhares de degraus, um após outro. As escadas em caracol tornavam-se hipnóticas, verdadeiramente manipuladoras para cada espírito que se atrevesse a percorrê-las.

No seu encalço, e uma vez deixada para trás a enorme porta de acesso à Torre, ele espreita o infinito olhando na direcção do topo da imponente construção. Ela já se encontrava uns bons quinhentos degraus à sua frente, continuando a espalhar a sua música sibilante.

Neste momento, ela detém-se. Olha para ele, lá em baixo, e pisca-lhe o olho, enquanto morde, suavemente, o seu lábio inferior. Retomando a incansável marcha sem destino, vai deixando escapar laivos de paixão, imperceptíveis para um qualquer distraído, prova de amor para quem a tenta alcançar.

Pois foi num ápice, enfim, que o apaixonado alcança a sua paixão. No preciso instante em que se presta a tocar-lhe, ao de leve, nos seus longos cabelos cor-de-amor, ela desvanece-se.

Esmorecido com tamanha traição, ser errante e único habitante da majestosa Torre, cai de joelhos no degrau em que se encontra. Subitamente, ouve, lá em baixo, o sibilar que lhe é tão familiar. Espreita, uma vez mais, na direcção do som: ei-la, confiante, junto ao degrau número um.

Ele pisca-lhe o olho, enquanto morde, suavemente, o seu lábio inferior.

O caminho a percorrer é longo, certamente, mas o topo não se afigura impossível: o amor que os une é real.


domingo, 7 de fevereiro de 2010

O Universo somos nós


Dizem que o Universo é a “totalidade das coisas”, o “conjunto de quanto existe”. É uma amálgama de Matemática, Física, Química, Biologia, et caetera.

É o palco da vida e da morte, é onde existe o Céu e o Inferno, é onde descansam os Anjos e habitam os Demónios.

Mas, para ele, o Universo não se resumia a tamanha vastidão. Seria insensato reproduzir uma definição lata, sem antes idealizar uma mais restrita.

Portanto, para ele, não havia definição mais exacta: o sorriso dela era o coração do Universo.

Quando ela se detinha à sua frente, com os pés bem juntinhos e os olhos brilhantes como duas pérolas, o seu coração derretia-se. E, nessa altura, o Universo era de uma beleza inimaginável.

Quando eles se abraçavam, e ela enrugava o seu narizinho com as gargalhadas que trocavam, o tempo era generoso, e corria mais devagar. E, nessa altura, quando os seus corpos formavam um só, o Universo era como um ser apaixonado.

Arrebatados de paixão, para ambos a vida só tinha um sentido, um único objectivo: viver um amor eterno, um amor que perdure no mundo real e até no mundo dos sonhos, um amor que transforme o finito em infinito.

Uma vez alcançado esse objectivo, esse amor será um amor universal, um amor que ficará registado na história.

O sorriso dela expande-se, o coração do Universo bate com mais força.

O Universo somos nós.


quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Prosopopeia épica


Numa prosopopeia épica, falarás hoje tu por mim, meu blogue. Conceder-te-ei plenos direitos – e, também, plenos deveres – para que fales em meu nome e partilhes, com os demais, aquilo que apenas tu sentes.

Blogue: - E o que poderá sentir uma página de internet, actualizada de quando em vez, se não passa disso mesmo: uma página de internet?
Eu: - A designação, não haja dúvidas, é deveras impessoal. Mas, se te quisermos dar alguma importância, ou a importância devida, não serás tu um pomposo documento disponível a qualquer tipo de utilizador, tanto em Portugal como na China?
Blogue: - Vejamos… se tu me escreves em Português, para que servirei eu… na China?
Eu: - Bem, a China, como quase todos os países por esse mundo fora, tem uma comunidade portuguesa!
Blogue: - Claro, uma comunidade com duzentas pessoas, todas de olhos em bico à espera que publiques um texto.
Eu: - Ei, a China foi apenas um exemplo, ok? Disse a China, como poderia ter dito a Nova Zelândia.
Blogue: - Nova Zelândia, pois está claro, um país que nem representação diplomática portuguesa tem. Tens a certeza de que queres continuar a mandar nomes de países para o ar? Ou vais dizer-me que as vacas neo-zelandesas falam português?
Eu: - Pronto, já te entendi. Não queres dialogar, assim seja. Eu saio de cena, e tu passas a recitar monólogos, que tal?
Blogue: - Sabes qual é a percentagem de portugueses a viver na China, face à população total do país? É de 0,00000015%. Tanto português a viver na China…
Eu: - Mas será que eu fiz mal a alguém, ao ponto de ter que ouvir os comentários azedos do meu blogue, no meu próprio blogue?
Blogue: - Não tens sido justo com deus…
Eu: - Só me faltava essa!
Blogue: - Nem mesmo com o diabo…
Eu: - Estás a passar das marcas!
Blogue: - Passar das marcas, ou ir além do limite das conveniências?
Eu: - Sabes que mais, esta conversa termina aqui!
Blogue: - Não termines, coloca antes os limites em.
Eu: - Ó blogue dum raio!
Blogue: - Cá estarei para te servir, meu mestre…

FIM


segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Razão de Ouro


A ponta farpada da haste rasga-me o peito com a mesma leviandade que um lápis perfura uma simples folha de papel.

Atordoado, sem perceber donde nem porquê tal objecto surge na minha direcção, sinto a gravidade a incumbir-se de completar o cenário.

O meu corpo é puxado violentamente para o solo, deixando-me a contemplar o céu estrelado.

Tomo consciência do entorpecimento que me invade as veias, mas, ainda assim, sozinho naquele ponto à beira-mar, consigo ouvir o suave canto vindo do horizonte. O calor que se sente é reconfortante, contrariando a angustiante solidão que me envolve.

Ter-me-á sido declarada guerra, sem que me apercebesse de tal? E se sim, de que cor virá pintado o inimigo? Da cor da guerra, aquela que nos é sublimemente apresentada quando a morte se dá a conhecer?

O meu pensamento procura-te longe, bem longe deste lugar. O rebentar das ondas aproxima-se dos meus pés, e o meu desejo é apenas um: que te cruzes no meu caminho.

A natureza, através das suas redes invisíveis, dá o seu contributo à concretização do desejo. Sinto-te perto, bem perto.

Ao fechar os olhos, sentindo o coração mais sereno que nunca, ouço a tua voz chamar por mim. Aproximas-te, dás-me o teu colo e afagas-me os cabelos.

De olhos ainda fechados, sou invadido pela tua beleza, aquela que dá sentido à Razão de Ouro.

O teu abraço faz-me ressuscitar. O teu beijo, esse, faz nascer um novo eu...


terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Um calor infernal


Abri a janela e voei. Voei para bem alto, donde os carros pareciam de brincar. Com os braços abertos e os pulmões cheios de ar, bastava desejar com muita força para que o voo fosse possível.

As correntes de ar frio aqueciam-me o espírito, reservando-me tempo para compreender tamanho paradoxo.

Entretanto, foi numa nuvem de tempo ameno que encontrei alguns amigos. De imediato me convidaram a sentar junto deles, enquanto conversavam com um indivíduo que nunca eu antes tinha visto. Uma misteriosa névoa envolvia o sujeito, tanto que a dois metros de distância me era impossível descrever o seu semblante.

O ambiente era estranho, começando a sentir-se um calor desconfortável naquela nuvem de tez branca, como se de uma pessoa se tratasse.

O indivíduo falava de personagens marcantes da história da humanidade, rindo-se dos seus perversos e repugnantes feitos. Falou de Calígula e a sua esquizofrenia bárbara, de Nero e a sua tirania desmedida, de Átila e o seu reinado de terror e destruição.

Fazia calor, cada vez mais calor. O indivídulo animava-se ao relembrar o Príncipe Vlad Drácula e os seus métodos de tortura e execução; deleitava-se ao recordar Ivan IV, o “Terrível”, e os seus catastróficos acessos de fúria. Os seus olhos brilharam quando a Condessa Isabel Báthori e o seu sadismo assassino despertaram na sua memória.

O calor tornara-se infernal. Era a vez de Estaline, Hitler, Pol Pot e Idi Amin Dada ganharem vida nas palavras do indivíduo. Ria-se com vontade ao descrever os genocídios perpetrados por tais figuras.

Quando a temperatura atingiu o seu auge, e quando todos nós, com excepção do indivíduo, parecíamos caminhar para um desfalecimento abrupto, este pediu-nos que olhássemos rapidamente para o Sol.

Olhos fitados na estrela, tão depressa fitados novamente no indivíduo. Assim o julgávamos nós, pois este havia desaparecido.

Foi enquanto o Diabo esfrega um olho.