sábado, 31 de outubro de 2009

Cara ou coroa?


“E porque não escrever sobre lágrimas?”, pensou ele. Haviam decorrido quatro dias desde a primeira queda vertiginosa ao solo. Desde então, as lágrimas não mais tinham parado de percorrer o seu único trajecto conhecido: o da gravidade.

A tarefa afigurava-se impraticável. Com os olhos inchados de tanto lacrimejar, a escrita virava costas ao escritor. Lágrima atrás de lágrima, borrão atrás de borrão, o nosso herói abandona o papel gatafunhado e lança uma moeda ao ar: cara ou coroa?

Pouco importa, pois darás por ti a ludibriar o resultado, ordenando a consciência a acreditar que aquele era o resultado pretendido.

Polegar flectido por baixo do indicador, a catapulta sempre funciona, qual fundíbulo de carne e osso. A moeda voa formando uma parábola, cujos eixos quase se tocam.

A piscina formada pelas lágrimas aguarda pelo impacto, o tempo abranda. A moeda rompe a película superficial, avança até ao fundo, e…

…cara ou coroa? A dita logrou-te as expectativas. Moeda ao ar não cai de pé… mas desta vez, caiu.


terça-feira, 27 de outubro de 2009

Sem destino


De mim voaste para bem longe... com as asas até então minhas...

Sem elas nunca conseguirei encontrar-te, sem elas a viagem torna-se ingrata.

Com uma venda nos olhos é como me sinto, de pés e mãos atados, imóvel e flutuando sobre o oceano, no ponto onde a latitude e a longitude igualam o zero absoluto.

Sinto-me um zero. Um zero no meio do oceano, onde a Lua africana desempenha o papel de inquisidora. “Quem és tu nesse mundo? Não és nada, nada foste, nada serás. Desaparece.”

A prisão desfaz-se, mas nem por isso vislumbro mais que um passo diante dos meus olhos. Sinto o frio do oceano, oceano que vira pulmão de aço para me manter refém do meu próprio destino.

Mas qual destino? Existirá realmente um?

Permanecerá a dúvida... sem destino definido.



quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O alter-ego


Tenho cinco anos. Não terei mais que isso. Estou no meu quarto, sozinho, e estendo as minhas pequenas mãos para a frente. Tomo consciência de que sou um ser racional, de que tenho uma consciência, de que estou vivo, de que existo. Agradeço a Deus a minha existência neste mundo (agradecimento, esse, provocado pela ingenuidade da idade), e sou assomado por uma felicidade sem fim.

A criança conhece, finalmente, o seu alter-ego. E nada voltará a ser como foi…



sábado, 10 de outubro de 2009

deus


Eram três horas da manhã. Abri os olhos e olhei o tecto e levantei-Me e calcei os chinelos e dirigi-Me à varanda.
Lá chegado, encontrei deus sentado na Minha poltrona, disposta num dos cantos do eirado.
Contemplava o céu estrelado, certamente absorto nuns quaisquer pensamentos. Não era o deus que Eu imaginava. Estranhamente, apesar de se encontrar sentado, afigurava-se mais pequeno que Eu.
Começando a sentir-Me incomodado com o silêncio do momento, ganhei coragem e decidi questioná-lo:
“Deus Meu, em que pensas tu?”
“Sabes…”, disse-Me, “estou cansado de ser o ser supremo, o todo-o-poderoso, o senhor do universo, o maior existente, a figura divina máxima. Estou cansado de ser a fonte de toda a obrigação moral, de ser o responsável pela vida e pela morte, pela felicidade e pela tristeza.”
“Mas… que queres dizer com isso, deus Meu?”
“O que quero dizer é que, de ora em diante, serás Tu a ocupar o meu lugar.”
“O teu lugar? Como assim? Se te referes à poltrona, considera-la tua! Não mais preciso dela. Aliás, nem sequer Me sinto digno de Me voltar a sentar nela.”
E deus sorriu.
“Não, não quero a Tua poltrona. Continua a ser Tua, como o sempre foi.”, reforçou. “Chegou o dia de renunciar ao meu estatuto de divindade. Chegou o dia de abraçares esta nova etapa, com a mesma paixão com que tens abraçado a Tua vida. Não receies, não temas, apenas desfruta”.
E, ao mesmo tempo que estas últimas palavras são proferidas, é então que Me sinto… Deus.
Eram três horas da manhã. O deus pequeno levanta-se e abraça-Me e caminha para o Meu quarto e deita-se e fecha os olhos.
Sento-Me na poltrona. Olho o céu estrelado, e perco-Me nos Meus pensamentos.



quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Percorrendo o infinito


Acordado, a olhar para o infinito, o rosto apoiado na mão esquerda...

Sonho contigo. Conheço-te numa viagem, em que sou viajante solitário...

Amor à primeira vista, uma empatia impossível de traduzir em palavras...

Será esta viagem, uma viagem sem destino? Ou antes uma viagem com um final chamado destino?

Por momentos, sinto-me apaixonado... o inconsciente sussurra: “não te distraias, continua…”.

Passamos horas a conversar, trocamos mil e uma palavras… cada uma delas ferindo-nos de paixão.

Se o meu nome for Sol, o teu nome será Lua… e andaremos de mão dada para sempre, percorrendo o infinito.

Desperto. Ainda sinto o teu perfume…


Na magia de um moinho


Neva lá fora… o frio, esse, reina no mundo exterior.

No interior do moinho, assim como no interior do seu coração, sente-se um calor apaixonado, capaz de derreter a neve que irrompe da escuridão do imenso céu. Cai a noite.

Ela espreita lá fora, enquanto sussurra junto à janela: “Tenho saudades tuas…”.

Ele, sentado no primeiro degrau da escada em caracol, olha na direcção da janela. Não a consegue ver.

Os seus espíritos, hoje separados pela linha invisível que separa a vida da morte, anseiam pelo momento em que se poderão voltar a abraçar, e a tornar um só.

Ela chora. Chora um choro sem fim, acabando por se afogar nas suas próprias lágrimas…

No cimo de um monte, num moinho envolto de magia, duas almas, outrora gémeas, gémeas novamente, unem-se num abraço eterno e verdadeiro…


Perdido no deserto


O vento queimava-me o espírito, qual fogo capaz de me consumir por dentro. O pensamento ía longe, não deixando lugar a dor ou qualquer expressão de sofrimento. Um corpo perdido no deserto, com o pensamento perdido noutro mundo. Um mundo distante, que nenhum adjectivo conseguiria descrever. Utópico seria o epíteto correcto, numa conjugação de palavras que me fez regressar ao mundo real, permitindo que esse mesmo pensamento, aquele perdido noutro mundo, se perdesse agora por entre a fina areia do imenso deserto. Não te encontro. O meu corpo, errante no deserto, procura-te incansavelmente, num horizonte que ganhou vida e se tornou imortal. E se eu nunca te encontrar? Vagueará o meu espírito, eternamente, por todos os mundos ainda por descobrir, na ânsia de um conforto?


Numa floresta de mil árvores


Numa floresta de mil árvores, encontro-te aninhada no topo da mais alta. Num sono profundo, com o Sol a espelhar o seu brilho no teu rosto, deixas escapar algumas palavras bonitas: “Só há um remédio para o amor: amar mais, descobrirmo-nos e completarmo-nos com o outro, enlouquecer de desejo e depois amar ainda mais”.

Não sou capaz de te acordar. Ao invés disso, contemplo-te até se fazer noite, e o Sol dar lugar à Lua.

Hipnotizado pelo teu encanto, acabo por adormecer a teu lado. Mergulhado nos meus sonhos, deixo também escapar umas palavras: “Serei feliz, ao morrer, se tiver vivido uma vida completa, vivida com paixão, com a mesma paixão do primeiro abraço que trocámos”.

Despertas com as minhas palavras. Não és capaz de me acordar. Ao invés disso, contemplas-me até se fazer dia, e a Lua dar lugar ao Sol…