domingo, 3 de junho de 2012

O demónio

E o demónio seguiu-me, como se visse em mim o seu alvo, sendo ele um experimentado predador. Seguiu-me por entre ruas que eu desconheço, por entre ruas que não existem, por entre ruas criadas por si a cada instante, com becos que desembocam em becos, sucessivamente mais estreitos e curtos, fazendo de mim a sua personagem idílica de uma emboscada há muito idealizada. E eu não conto com a ajuda de ninguém, pois sou apenas eu e o demónio, o demónio e eu, como se me encontrasse à deriva num mar encruzilhado, sistematicamente fustigado pela sua fúria demoníaca, à deriva num mar encruzilhado. E eu decido interromper a fuga, pois o demónio não pode ser real, não pode ser real, e o demónio sorri, sibilante, e fixa-me o olhar, o demónio, e a terra arde e ferve por baixo dos seus cascos, e o calor queima-me e consome-me o espírito. E eu pergunto-lhe o que queres, sua traça que tudo corrói, que tudo desfaz, que tudo destrói, que tudo arruína, que tudo perverte. E o demónio olha-me com compaixão, como se de um velho amigo eu me tratasse. E o seu sorriso, inquietante, provocador, nunca se altera. É um sorriso matraqueado, insistente, intemporal. E eu volto costas ao demónio, e as ruas já não são as mesmas. A noite caiu com mão pesada sobre aquele labirinto que é negro como o fundo de um poço, onde já não existe esperança para quem no seu interior tropeçou. E a noite caiu sem estrelas, sem lua, sem sentimento. E eu olho o céu, e vejo o sorriso do demónio, sibilante, omnipresente, omnipotente. E a terra queima sob os meus pés, fervo por dentro como se atingido por uma febre perniciosa. E retomo o passo, depois de uma eternidade que passou naquele instante, preparado para uma eternidade de instantes que há de vir. E corro, agora, no teu encalço, demónio, cujo rasto não são mais que feridas abertas nesta terra, nesta terra que não te pertence, que não é tua. E cravo o meu olhar no teu, demónio, num instante que será eterno, num instante que será somente meu. Aceita o meu sorriso.


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