terça-feira, 26 de junho de 2012

Um caminho, um instante

Sónia Guerreiro
Esperou por ele um instante. Um número infinito de instantes, talvez. Esperou o tempo suficiente para que o mundo nascesse duas vezes, e ainda assim lhe pareceu apenas um momento. Esperou, enquanto o mundo envelhecia, enquanto as estrelas brilhavam entre si, enquanto os universos se expandiam e contraíam.

Esperou, enquanto a lua embalava as noites e o sol amornava os dias. Esperou, sabendo que ele não mais voltaria, sabendo que a espera seria vã, como se esperasse o passado no futuro, ou o futuro no passado.

Esperou, alimentando a esperança que em si existia, com recordações que foi esquecendo. Porque a memória é traiçoeira, se o é.

Esperou, até se sentir exausta, como se acabasse de nascer e o ar lhe faltasse para poder chorar.

A espera foi madrasta para os sonhos que habitavam em si.

Ele quis reencontrar-te, eu sei que sim. Mas o caminho, o caminho já não tinha o mesmo chão...


segunda-feira, 25 de junho de 2012

O coração do nosso mundo

daqui.
Quando a música começou a tocar, aquela música que sempre me embalou o espírito, a paisagem assumiu um aroma agridoce. Os pássaros sobrevoavam aquele imenso campo bem lá no alto, tão alto que pareciam ser do tamanho de formigas, em círculos perfeitos que não o chegavam a ser.

O céu estava tingido de um laranja que eu nunca tinha presenciado, nunca, um laranja que tocava o horizonte e contagiava toda a terra ao seu redor. Era um laranja que enchia de sensibilidade aqueles que se encontravam desprovidos dela, emocionando todos os demais. Poderá, um momento destes, ser real? 

Os pássaros voavam ao sabor da música, aquela música que não era agridoce, mas simplesmente doce. O calor, o calor que se fazia sentir era bafejado por uma brisa fresca vinda das poucas árvores que me rodeavam. Senti-as felizes, e não o estranhei. Quando a essência dos seres nos toca o coração, somos capazes de ver a vida pintada com as cores do arco-íris. E a vida, assim, é sobejamente bonita.

Deito-me na terra, e olho o céu  uma vez mais. Fixo o meu olhar num ponto distante, e sorrio. Começa a cair uma chuva miudinha, muito miudinha, que por momentos me arrefece o espírito. Sinto o coração do nosso mundo a bater, cadenciado, numa harmonia perfeita. 

A natureza, dentro de mim, ardente, ébria, chama pelo meu nome. A música não pára, e eu sou, uma vez mais, verdadeiramente feliz.


domingo, 3 de junho de 2012

O demónio

E o demónio seguiu-me, como se visse em mim o seu alvo, sendo ele um experimentado predador. Seguiu-me por entre ruas que eu desconheço, por entre ruas que não existem, por entre ruas criadas por si a cada instante, com becos que desembocam em becos, sucessivamente mais estreitos e curtos, fazendo de mim a sua personagem idílica de uma emboscada há muito idealizada. E eu não conto com a ajuda de ninguém, pois sou apenas eu e o demónio, o demónio e eu, como se me encontrasse à deriva num mar encruzilhado, sistematicamente fustigado pela sua fúria demoníaca, à deriva num mar encruzilhado. E eu decido interromper a fuga, pois o demónio não pode ser real, não pode ser real, e o demónio sorri, sibilante, e fixa-me o olhar, o demónio, e a terra arde e ferve por baixo dos seus cascos, e o calor queima-me e consome-me o espírito. E eu pergunto-lhe o que queres, sua traça que tudo corrói, que tudo desfaz, que tudo destrói, que tudo arruína, que tudo perverte. E o demónio olha-me com compaixão, como se de um velho amigo eu me tratasse. E o seu sorriso, inquietante, provocador, nunca se altera. É um sorriso matraqueado, insistente, intemporal. E eu volto costas ao demónio, e as ruas já não são as mesmas. A noite caiu com mão pesada sobre aquele labirinto que é negro como o fundo de um poço, onde já não existe esperança para quem no seu interior tropeçou. E a noite caiu sem estrelas, sem lua, sem sentimento. E eu olho o céu, e vejo o sorriso do demónio, sibilante, omnipresente, omnipotente. E a terra queima sob os meus pés, fervo por dentro como se atingido por uma febre perniciosa. E retomo o passo, depois de uma eternidade que passou naquele instante, preparado para uma eternidade de instantes que há de vir. E corro, agora, no teu encalço, demónio, cujo rasto não são mais que feridas abertas nesta terra, nesta terra que não te pertence, que não é tua. E cravo o meu olhar no teu, demónio, num instante que será eterno, num instante que será somente meu. Aceita o meu sorriso.