sábado, 26 de maio de 2012

Tempo

A vida é curta. Não me façam crer o contrário. Vivêssemos nós mil anos, e ainda assim seria curta.

Mais curta ainda, porque não lhe conhecemos o fim, o dia em que o eu deixa de ser eu, passando a ser, apenas, um vazio silencioso.

Mas ainda bem que assim o é, pois doutra forma, que vida infeliz seria a nossa, lutando contra o tempo perante o impiedoso calendário daquela a quem chamamos morte.

E não havendo forma de contornar o tempo, apenas se me afigura uma única forma de estar: viver e ser feliz, sem nunca baixar a guarda.

Pois no dia em que me surgires com o calendário na mão e um sorriso vadio nos lábios, dizendo-me que o tempo se encontra instável, e que assim se encontra o meu estado de espírito, prepara-te...

...a caçadeira irá estar carregada.


quinta-feira, 10 de maio de 2012

Tiquetaque

Ela agarrou-se às palavras soltas que viajavam no tempo, a uma velocidade bem superior à da luz. Palavras intemporais, que perpetuavam um ilusório sentimento de existência.

Levantou-se, por entre alguns suores frios que a haviam atormentado nos últimos instantes, e caminhou até à janela.

A lua não estava presente. De facto, pouco importava. A noite estava escura como breu, o vento soprava à força de pulso (divino, quem sabe?).

Os espíritos, em turba, passeavam sem destino naquela noite fria, quais figuras erráticas à procura do seu lugar.

Perante aquele cenário, ela sorriu, ao mesmo tempo que acendeu um cigarro. Receosa de voltar a adormecer e de não mais voltar a acordar, ali se deixou permanecer, cigarro após cigarro.

Viu o sol e a lua jogarem ao esconde-esconde durante dias e noites a fio, num ciclo que se tornou, impetuosamente, vicioso.

Viu nascer as últimas flores, viu os rios e o mar secarem, viu a neve cair incessantemente, derreter e ser devorada pelo inferno sob os seus pés.

Viu o mundo reduzir-se a pó, sem nunca o ter desejado.

E agora? Agora, que a ampulheta da sua vida perdeu a areia que lhe restava, nada mais há a fazer.

Ela apaga o último cigarro, piscando o olho ao sono que lhe trará descanso...

Tiquetaque. O tempo chegou ao fim.


segunda-feira, 7 de maio de 2012

Ensaio sobre o Arrependimento

Serei breve.

De cada vez que ouço (ou leio) alguém dizer algo como "só me arrependo do que não faço", uma nuvem de interrogações paira, de imediato, sobre a minha cabeça.

É verdade que serei suspeito, pelo facto de não ser, propriamente, um fã de máximas. Ainda assim, uma máxima carregada de tanta arrogância, presunção e pretensiosismo na sua essência, naturalmente que nunca se encaixaria na minha caixinha das denominadas "frases feitas".

Para agravar ainda mais o cenário da "bela" máxima, atendamos à origem e significado de "arrependimento":

Do grego μεταμέλεια - Metanóia (Meta=Mudança, Nóia=Mente), arrependimento significa "Mudança de Mentalidade".

Quer isto dizer, então, que eu apenas admito mudar de mentalidade, relativamente àquilo que não fiz? Mais uma nuvem de interrogações...

Posto isto, se alguém me conseguir demonstrar que o aparente antagonismo de uma frase como "só me arrependo do que não faço" é simplesmente má interpretação da minha parte, cá estarei para me arrepender...

... do que (não) escrevi.



"O remorso é uma impotência, ele voltará a cometer o mesmo pecado. Apenas o arrependimento é uma força que põe termo a tudo.", Honoré de Balzac.


sexta-feira, 4 de maio de 2012

O monstro

daqui.
Abres a porta de casa, lentamente. Deste conta, ainda do lado de dentro, que ali passava um vento corrosivo, um vento que te injuriava, que te lançava blasfémias de todo o tipo, a toda a voz.

Ficaste, quiçá, estupefacto, ou talvez não. Num ímpeto de indisfarçada raiva, levantaste a tua perna direita no ar, até esta perfazer um ângulo de noventa graus com a coxa. No mesmo instante, e com uma violência sobre-humana, lançaste o teu pé ao solo, na esperança de reprimir as palavras que se faziam ouvir.

O mundo estremeceu. O vento não mais se pronunciou.

O clima que se vive é absolutamente singular. As aves que ali se encontravam, nas redondezas, todas elas voaram para bem longe. Desces os três degraus do alpendre para o jardim, sob o olhar atento de um silêncio que nunca, alguma vez, se fez sentir naquele local.

Inspiras, com a indelicadeza que te é característica, o ar inerte que te sufoca. Inspiras com violência, não te sentisses tu o ser mais irascível à face da Terra.

Olhas ao teu redor, o mundo parece acabado. Pesaroso, avanças pela rua fora, sem qualquer pensamento sobre o destino que almejas.

Cospes para o chão, à medida que a estrada ganha uma infinitude quimérica. Sentes-te prisioneiro de um mundo que não é teu, e que ao mesmo tempo procuras destruir.

Tu és o monstro que habita em mim.