terça-feira, 28 de setembro de 2010

Dois mundos


Era o pombo-correio o responsável pela constante troca de mensagens de amor. Quando um dia a terra se abriu, fruto de um fenómeno hoje tão bem conhecido, mas que naquele tempo ido tanta perplexidade causou, as suas vidas sofreram o maior revés que alguma vez haviam conhecido.

A distância que os separava, desde então, quase que sentenciara o fascinante amor que havia nascido nos seus corações. Ela, habitante do enorme pedaço de terra que se havia deslocado para oeste; ele, ser errante do pequeno pedaço de terra que se havia afastado no sentido oposto.

Perante aquele cenário, perante o afastamento contínuo – relativamente ao ponto de origem – das duas peças daquele estranho puzzle, o pombo tornara-se num meio de comunicação extraordinariamente admirável. Sem ter de atravessar as águas revoltas do novo mar nascido, que todas as embarcações decidia soçobrar, a ave desempenhava o seu trabalho com esmero e tenacidade.

Uma vez que o seu próprio ninho se havia partido em dois mundos, o pombo passava os seus dias num vaivém permanente, tentando, desesperadamente, reencontrar a sua origem.

As mensagens, essas, eram escritas quase à mesma velocidade com que viajavam para as mãos da outra parte. Eram trocadas promessas várias, desejos muitos, saudades infinitas, lágrimas capazes de afogar o mundo... nada escapava à veia literária dos dois amantes, que juravam um ao outro um amor para além do imaginável.

Mas, com o decorrer do tempo, a distância existente entre os dois pedaços de terra foi crescendo. Como consequência desse infortúnio, as travessias do pombo tornavam-se cada vez mais longas, mesmo quando o vento desempenhava um papel de benfeitor. O resultado de tão dolorosa consequência não poderia ser outro: as saudades foram consumindo o espírito de cada um; a distância foi enfraquecendo a pobre ave...

E quando a esperança tendia a extinguir-se, quando os seus corações já só alimentavam cicatrizes resultantes de anos de sofrimento, eis que o improvável toma lugar. Os dois pedaços de terra, após longa viagem em sentidos opostos, voltam a encontrar-se.

No céu, o último voo do pombo é substituído por uma invulgar chuva de estrelas.

Na terra, o primeiro abraço de muitos anos assume o renascer de duas vidas.


terça-feira, 21 de setembro de 2010

O erro de Deus


Ele esperou por ela à janela. Esperou dias, meses, anos, uma vida inteira. Esperou até ficar bem velhinho, e o corpo se render a um imperativo a que chamamos morte. Não obstante, Deus restituiu-lhe a juventude e deu-lhe a possibilidade de voltar à Terra, no pressuposto de ver cumprido o seu desejo mais antigo: descobrir o verdadeiro poder do amor. Desde que havia criado o dia e a noite, o céu e a terra, o Sol e a Lua, a água, as plantas, as árvores, os peixes, as aves e os restantes animais, desde o dia que havia criado o Homem, Deus questionava-se sobre algo que, amarguradamente, desconhecia.

Após uma tentativa falhada, algo que nunca antes tinha ocorrido, Deus voltou a arregaçar as mangas e, em seguida, pôs mãos à obra. Desenhou o melhor desígnio que se achava capaz de projectar, colocando a pobre alma de novo na Terra e ressuscitando-a num lindo bebé.

O destino que lhe cabia era simples: ter uma infância perfeita, com uns pais e amigos perfeitos, numa escola perfeita, com a educação perfeita, na cidade perfeita. Aos dezoito anos, e partindo do pressuposto de que os Seus divinos cálculos, desta vez, não falhariam, o rapaz iria conhecer a sua cara metade, a sua alma gémea, a sua musa inspiradora. Aos dezoito anos, o rapaz iria conhecer o verdadeiro amor, permitindo a Deus a descoberta de algo que, apesar de se apresentar como Sua criação, transcendia a Sua compreensão.

E assim foi. Ou talvez não...

O rapaz cresceu forte, determinado, ambicioso. Aos seis anos já lia Tolstoi, aos dez anos praticava natação, futebol e judo, aos catorze anos já assumia um compromisso sério, aos desasseis anos cometia a sua primeira traição. Aos dezoitos anos entrava na melhor faculdade da cidade, aos dezoito anos tornava-se uma pessoa altiva, arrogante e preconceituosa, aos dezoito anos colocava termo a um namoro repleto de infidelidades. Deus sentia-se um ser errático perante aquele cenário que, salvo melhor juízo, considerava repulsivo.

Contudo, Deus acreditava ser ainda possível ocorrer uma mudança positiva. Deus estava crente de que, uma vez mais, os Seus cálculos haviam fracassado. Mas a vida é longa, e tempo foi algo que nunca Lhe faltou. E Deus, portanto, esperou.

Mas terá esperado em vão?

Aos vinte e um anos, o rapaz concluiu o seu curso. Aos vinte e um anos, ainda que dando seguimento aos seus estudos, o rapaz iniciou, igualmente, a sua carreira profissional. Aos trinta anos, com um considerável sucesso alcançado já como empreendedor, e após algumas relações mal sucedidas, o rapaz, agora homem, empenha-se no objectivo de constituir família. Aos trinta e cinco anos decide casar com uma mulher que não ama, e aos trinta e sete anos tem o primeiro filho da mulher que não ama. Aos trinta e sete anos, as traições multiplicam-se. Aos quarenta anos, o homem recorda a infância com saudade. Não se lembra da última vez que jogou futebol com os seus amigos, não se lembra da última vez em que foi feliz. Se alguma vez o foi de verdade.

Aos quarenta e cinco anos, viciado inveterado do álcool e do tabaco, o homem reencontra Deus no céu, após ter sido vítima de um ataque cardíaco fatal, momentos após se ter deitado ao lado da mulher que não ama.

Deus foi ingénuo. Deus, ao ver o homem perante Si, não foi capaz de conter o choro do desalento.

A obsessão de uma vida perfeita, induzida na mente da pobre alma, levou ao simples esquecimento do propósito que nos coloca neste belíssimo grão de areia do vasto deserto que é o Universo: sermos felizes!

O verdadeiro poder do amor não está nas mãos de Deus, mas sim nos nossos corações.

Deus errou. E nós, também.


domingo, 5 de setembro de 2010

A aldeia


Mas que histórias fantásticas as daquela aldeia. A aldeia situada no fim do mundo, onde para lá chegar o comboio se perdia no meio dos vales e das montanhas.

Era a aldeia do poço mais fundo da Terra, da cobra-d'água do tamanho de dois homens adultos, do sujeito que nunca dormia e passava os dias e noites a contemplar o céu.

Era a aldeia do açude onde as mulheres não mais faziam que esfregar e lavar roupa.

Era a aldeia onde habitavam os maiores insectos do reino animal, e onde os morcegos eram do tamanho de águias para lhes poderem fazer face.

Era a aldeia da rã que vivia feliz num chafariz, do pequeno lacrau que corria por baixo dos meus pés, enquanto sentado no muro do quintal.

Era a aldeia onde os meus sonhos ganhavam vida, onde as minhas fantasias de menino se tornavam realidade.

Vinte anos depois, a aldeia não é mais a mesma.

O comboio fareja o caminho como um cão perdigueiro, mais rápido que a própria luz. O poço perdeu o seu encanto de construção assustadora, a cobra-d'água é pouco maior do que um palmo e meio. Quanto ao homem, que dizer de uma estátua que olha o céu sem azo a desatenções?

O açude é apenas uma lembrança, pois o ribeiro não resistiu à febre divina. Os insectos recuperaram a sua pequenez, os morcegos - resignados - seguiram o mesmo caminho.

O lugar onde antes existia um chafariz, é agora ocupado por um banco de jardim. Terá a rã regressado ao açude onde a água já não corre, e encontrado a companhia de um qualquer lacrau escondido debaixo de um seixo?

Rasgos de memória de uma infância não muito longínqua, vivida com anseio, paixão e muita fantasia.